O mundo da literatura infantil sempre me fascinou. O facto de ter trabalhado como educadora de infância fez com que a minha relação com os livros ilustrados fosse aprofundada, na medida em que fazia o uso do livro para provocar conversas, descobertas, pensamentos ou mesmo na tentativa de dar respostas a perguntas que nos surgiam no dia-a-dia.

Hoje, enquanto mediadora de leitura, penso que me tornei mais crítica em relação ao livro ilustrado, da mesma forma que, cada vez mais, entendo este tipo de literatura como um apoio do pensamento quer de crianças, quer de adultos… Adoro quando estes livros provocam sorrisos e gargalhadas abafadas nos ditos “crescidos”.
No entanto, o que pensar da representatividade na literatura infantil? Qual o significado desta palavra neste contexto?
Na semana passada tive a oportunidade de participar numa masterclass no âmbito do Projeto Every Story Matters onde a Acesso Cultura, uma associação que “promove o acesso – físico, social e intelectual – à participação cultural” da qual sou membro, é parceira. Este projeto financiado pela Europa Criativa tem como grande objetivo tornar os livros mais inclusivos.
Esta masterclass ministrada por Winny Ang, uma psiquiatra que também escreve livros para crianças, foi um tempo para refletir sobre o impacto da leitura e de contar histórias no desenvolvimento das crianças. Qual a relação entre as histórias e a saúde mental das pessoas? Como se desenvolvem a identidade, as emoções e a imaginação quando pensamos na relação literatura/psicologia?
Houve uma frase que Winny disse que me ficou na memória: “quando refletimos sobre um texto não há verdades absolutas”. Esta afirmação é válida em todo o meu trabalho: na mediação de leitura, na mediação cultural, no ato educativo, na criação artística. Trabalhar nestas áreas é dançar na subjetividade sem perder o norte; é não esquecer “o outro”, a sua voz, as suas narrativas, as suas experiências. É por isso que se torna um trabalho desafiante e rico; é por isso que gosto tanto do que faço.
Ler é um encontro entre um leitor específico, num momento e local específicos. Li pela primeira vez o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley aos 18 anos e voltei a lê-lo aos 28. Foram duas leituras diferentes do mesmo livro na medida em que passados 10 anos da primeira leitura, eu já não era a mesma pessoa: acrescentei à minha bagagem novas experiências, vivências, perspetivas, opiniões.
Neste sentido, Winny falou de um ciclo composto por três partes: leitura-criança-contexto. Elaborou esta ideia dando o exemplo de olharmos para um caleidoscópio: tudo se mistura. A nossa identidade é feita de dimensões dinâmicas onde existem várias interseções: sexo, orientação sexual, etnicidade, religião, socialização (profissional), classe social. A nossa identidade é algo dinâmico na medida em que interpretamos vários papéis na nossa vida. Definirmo-nos é um ato complexo. Tantas vezes dou por mim a pensar em Fernando Pessoa e nos seus heterónimos: também eu me sinto várias pessoas numa só.
Embora o desenvolvimento global das crianças e jovens seja algo contínuo no tempo (ao invés de algo estanque que se pode “arrumar em caixinhas”), Winny colocou todos os participantes a pensar em faixas etárias específicas, pois estas estão intrinsecamente ligadas a uma determinada maturidade. Se um bebé (0-2 anos) começa a sua vida de leitor “lendo” com todos os seus sentidos, estamos a contribuir para o desenvolvimento da sua linguagem não-verbal e pré-verbal. Situamo-nos assim no estádio sensorio-motor, de acordo com Piaget, onde as emoções básicas e o vínculo são a estrutura do desenvolvimento do bebé.
O pré-leitor (2-6 anos), detentor de uma linguagem concreta, encontra-se numa fase de desenvolvimento onde a fantasia já é algo consciente: daí a distinção ente a realidade e o faz de conta. Já quando entramos na faixa etária entre os 6 e os 10 anos, começamos a observar uma criança-leitora enquanto herói/heroína. Aqui, entramos no mundo da metáfora, em que o nível de desenvolvimento socio-emocional releva uma complexidade de emoções, a capacidade de construção do auto-conceito (o “eu”) e da empatia. O interesse por histórias de aventura começa a desenvolver-se.
Já na faixa etária dos adolescentes (e pré-adolescente, se nos posicionarmos entre os 11 e os 16 anos), começamos a observar um leitor/pensador. A capacidade de pensamento e de linguagem abstrata permite o confronto de perspetivas complexas sobre um dado assunto. Torna-se assim relevante a introdução de leituras que levem ao questionamento, que proporcionem uma reflexão sobre valores e normas. O jovem começa a identificar-se com determinados valores e a pensar sobre dilemas morais.
Ter consciência destas fases de desenvolvimento das crianças e jovens é essencial não só na escolha de livros para sessões de mediação mas também na criação dos próprios livros, quer ao nível da narrativa, quer ao nível da ilustração. Pergunto: quantos livros ilustrados conhecem vocês em que a personagem principal é negra?
A representatividade nos livros importa porque só assim nos identificamos com eles. A literatura infantil é uma forte aliada da educação cívica quando aborda temas fraturantes como as questões de género, a orientação sexual, a diversidade racial, a deficiência ou a doença. Neste sentido já referi alguns livros nomeadamente as edições do Projeto Falas Afrikanas, o livro do Jaime ou o que tem sido editado pela Fragmenta/Akiara. Futuramente trarei mais exemplos.
Afinal, que histórias habitam a memória da nossa infância? Importa refletir sobre isso, da mesma forma que importa que os heróis não sejam sempre rapazes ou que as raparigas sejam sempre associadas à imagem de uma menina bonita que adora princesas (e aqui podemos logo começar a questionar o padrão de beleza); que há rapazes que adoram brincar ao faz de conta trocando roupas às bonecas e fingindo que vão às compras; que as raparigas também gostam de artes marciais ou de bombeiros; que meninos e meninas negras, asiáticas ou de variadas outras origens têm infâncias completamente diferentes daquelas que estamos acostumados a ver, pois os seus brinquedos são diferentes dos nossos e as suas brincadeiras também. E todas são válidas: é essa a riqueza da diversidade e da representatividade.
A literatura infantil tem o poder de desconstruir preconceitos e estereótipos. Façamos uso dela.