Nos Museus fazem-se perguntas?

Os museus reabriram. Acho que é devido à sua reabertura que tenho pensado bastante na ideia de museu enquanto forum: um espaço onde se discute, onde se argumentam pontos de vista, onde se questiona a História. Faz falta haver mais espaço de debate nos museus. E faz falta questionar a História. Vivemos mergulhados em pontos de vista eurocêntricos, muito à custa daquilo que são os manuais escolares, com terminologias com as quais não concordo e uma boa dose de preconceitos, nomeadamente de género (mas isso dava para, pelo menos, mais meia dúzia de artigos aqui no blog…fica para um dia destes).

Grupo do Ensino Secundário no final da visita à Exposição Convivência(s). Lisboa Plural. 1147-1910.
Museu de Lisboa (Pavilhão Preto), 2019.

Podem-me dizer que factos são factos. Que um acontecimento num determinado momento e local é um facto. Mas a forma como a ação decorreu não tem apenas uma voz: tem várias.

Eis uma das questões centrais, para mim, na educação e mediação em museus: ao fazer visitas numa determinada exposição/monumento posso ter dois tipos de atitude – a) apresentar a arte/objeto (não há mediação, há transmissão de informações) ou b) fazer as pessoas pensar no objeto (questionando, instigando o pensamento). Que perguntas podemos fazer aos objetos que temos expostos nos museus? Todas. Nos museus contam-se histórias e é a forma como as contamos, partilhando vários pontos de vista, que vai ou não suscitar pensamento crítico nos participantes.

Este assunto remete-me de imediato a uma exposição na qual trabalhei e cujo nome era Convivênvia(s). Lisboa Plural. 1147-1910. Esta exposição temporária realizou-se no Museu de Lisboa-Palácio Pimenta (Pavilhão Preto).

Mediar as “Convivências” foi talvez um dos maiores desafios que já tive. Esta exposição suscitava várias questões face aos temas que abordava nos seus três núcleos: Cristãos, muçulmanos e judeus na Lisboa medieval, a Lisboa dos africanos e os europeus de Lisboa

A abordagem pela qual iniciava a visita era questionando os participantes: onde nasceram? Onde vivem? Qual o significado que a cidade de Lisboa tem para vocês?

Partindo das respostas que eram dadas ia surgindo uma conversa sobre as origens… as nossas e as da cidade. Porque Lisboa é uma cidade plural com várias cores, vozes, cheiros e sons, fazíamos uma viagem no tempo até ao século XII onde conversávamos sobre as convivências religiosas na cidade antes de D. Afonso Henriques fazer o Cerco a Lisboa em 1147 e a tomar aos mouros.

Ao longo da exposição deparávamo-nos com questões sensíveis ou acontecimentos trágicos. O massacre aos judeus de 1506 era um deles. Ainda existe perseguição religiosa? Sim, já se passaram mais de 500 anos e isso ainda existe. A História bem nos tenta ensinar quais os caminhos que não devemos repetir mas nem sempre aprendemos.

Inevitavelmente falávamos sobre a expansão marítima, ou Descobrimentos, se preferirem. Afinal, é com essa denominação que vem nos manuais escolares. Fico sempre uns minutos a observar os grupos escolares quando se aborda este tema. A postura mantém-se: uma epopeia digna de heróis, fomos exploradores, conquistadores! E a pergunta que lhes fiz e faço sempre é: à custa de quê? E assim iniciávamos a nossa conversa sobre o rapto e venda de pessoas escravizadas.

Alguns adolescentes com os quais fiz visitas sabiam descrições pormenorizadas das condições em que estas pessoas eram transportadas nos chamados “barcos negreiros”; outros ficam de olhos arregalados e até impressionados quando lhes contava que, segundo os relatos que chegam até aos nossos dias, as pessoas eram apanhadas em determinadas zonas da costa africana, levadas à força, amarradas e amontoadas nos porões dos barcos onde teriam de conviver com ratos, doenças, fome e fezes. Há muita informação sobre isto aqui.

Um dos pontos-chave desta exposição era o de se compreender como é que a cidade de Lisboa tinha sido construída: à custa de mão de obra de pessoas escravizadas. Imaginávamos então uma Lisboa quinhentista em que o Terreiro de Paço era um espaço onde se podia comprar pessoas. Que essas pessoas eram tratadas como uma mercadoria e que faziam o trabalho que mais ninguém queria fazer sem ser remuneradas por isso, tendo ainda condições de vida, na sua grande maioria, miseráveis. Entre as várias funções que as pessoas escravizadas tiveram em Lisboa, uma das que as crianças e jovens mais se impressionavam era o das calhandreiras. Um trabalho normalmente desempenhado por mulheres, cuja função era ir buscar às portas das casas os potes com os dejetos para os irem despejar… ao rio.

Acham que ainda existe escravatura hoje em dia? Alguns respondiam prontamente que não, outros ficavam a matutar no assunto. O que acham de uma pessoa que recebe menos de um euro por dia pelo seu trabalho? Os rostos ficavam incrédulos. Será que isso pode ser uma forma moderna de escravatura?

Sim, completamente!

Então se acham isso ainda existe escravatura nos nossos dias. Ficávamos um tempo a conversar sobre os países em que as pessoas trabalham mais de 10 horas por dia em condições miseráveis e recebem esses valores. A indústria têxtil em países asiáticos é um exemplo disso. Sugeria que, em casa, fizessem uma pesquisa sobre o assunto. Será que vestimos roupas feitas por essas pessoas?

Este relato é apenas um exemplo das experiências que fui tendo e que me fazem refletir sobre a função pedagógica da narrativa museológica para o desenvolvimento do espírito crítico nas crianças e nos jovens.

Grão a grão enche a galinha o papo, oiço isto da minha avó desde bem pequena. Espero, com os meus grãos, fazer com que os grupos de crianças e jovens que vão passando pelas minhas visitas, vão alimentando e construindo o seu espírito crítico e cívico.

Os profissionais de educação e mediação de museus estão, por um momento, na vida das pessoas. Que esse momento seja diferenciador, questionador, pedagógico, educativo e, acima de tudo, transformador. Que estes princípios não sejam postos de parte por estarmos a viver uma pandemia e que os museus priorizem apostar na educação e mediação para e com as pessoas… afinal, não é esse o sentido da sua existência?

4 Replies to “Nos Museus fazem-se perguntas?”

  1. Que bonito Ana Sofia!

    Estou a gostar muito dos teus artigos para o blog! Estão virados para os “principiantes” mas temos mesmo que começar por algum lado!

    Neste, tenho um reparo a fazer-te muito importante, não se diz “pessoas escravas”, elas não nasceram escravas… a designação correta é PESSOAS ESCRAVIZADAS, elas foram feitas escravas.

    Bjs querida. Rosário ________________________________

  2. Parabéns querida Sofia . O ato de educar exige hoje a cada um de nós ajudar os mais jovens a serem cidadãos pensantes e exigentes que não reproduzem apenas e que lhes é dito. O ato de educar exige de cada um de nós estar atento e disponível para informar com rigor, questionar, e ouvir o que os mais novos têm para nos ensinar. Tal, vai exigir ao outro que saiba ouvir, questionar , dar hipótese, propor , pensar … Só assim é possível aprender, de modo criativo e único. Hoje, uma escola transmissiva é uma escola desactualizada que não serve ninguém. Um Educador , um mediador, um professor tem o dever de promover o pensamento crítico fundamentado das crianças e dos jovens . Um abraço e continua .Ana Bela

    1. Muito obrigada Professora! Grão a grão vamos formando cidadãos pensantes com vista a um mundo mais honesto e mais justo. Beijinhos!

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