Não há boas ditaduras.

Aviso à navegação: ao longo deste texto faço referência a algumas das passagens mais chocantes do livro Cisnes Selvagens de Jung Chang, editado pela Quetzal. Faço esta ressalva para que, caso mergulhem na leitura desta minha reflexão, não sejam apanhados desprevenidos.

Quando decidi ler Cisnes Selvagens não estava muito consciente do mundo que iria descobrir. Penso que é uma leitura que toda a gente devia fazer. Jung Chang apresenta uma narrativa de não ficção que abraça uma multiplicidade de estilos: um romance histórico autobiográfico.

Recuamos à China do início do século 20, caracterizada pela vivência imperialista (o império manchu governava a China há mais de 260 anos). Falamos de uma época conturbada em que a China andava em constante guerra com o Japão. A descrição que Jung faz da sua avó remete-me de imediato às imagens da Ópera Chinesa que podemos ver no Museu do Oriente: “Tinha um rosto oval, com faces rosadas e pele sedosa. Usava os cabelos, negros, compridos e muito brilhantes, entretecidos numa grossa trança que lhe caía até à cintura”.

Estamos então na época em que a avó de Jung Chang, com apenas 15 anos, se tornou concubina de um militar. A sua figura traduzia aquilo que era considerado o ideal de beleza na época, nomeadamente pelos seus pés enfaixados: aos dois anos de idade, a sua própria mãe, que também tinha os pés enfaixados, enrolou-lhe uma faixa de 6 metros nos seus pés dobrando os dedos para baixo da planta. Depois colocou uma grande pedra em cima para esmagar o arco. Foi uma questão de azar: cerca de dois anos depois a prática foi abolida mas a avó de Jung passou toda a sua vida com dores devido a esta atrocidade que era uma prática comum,

A avó de Jung deu à luz a filha, a mãe de Jung, em 1931, ano em que os Japoneses desencadearam o seu ataque contra a Manchúria – uma época de saque e destruição. Estas duas mulheres que antecederam a autora, viveram sob o o regime japonês, liderado pelo imperador Manchukuo, Pu Yi, numa época em que os campos de trabalhos forçados eram a realidade de muita gente – tal como a fome. Existe uma passagem do livro em que uma mulher põe a filha à venda por 10 quilos de arroz.

Já na adolescência, a mãe de Jung começa a ter ligações com o Partido Comunista, na esperança de ter encontrando uma liderança justa, que acabasse com a fome e desse melhores condições de vida às pessoas. A vida sob o regime do Kuomitang, o Partido Nacionalista Chinês, era muito dura: não só havia muita miséria como era escandalosa a demonstração de riqueza por parte dos militares e líderes que geriam o regime.

De forma muito resumida posso-vos contar que a mãe de Jung, ao longo da sua vida, se depara com esta questão: qual a diferença entre o Koumitang e os Comunistas? A mesma questão é refletida pela própria autora, já no final no livro.

A ideia com que fico da leitura destes acontecimentos é esta: o Partido Comunista Chinês e o seu líder Mao Tsé-Tung sempre se apoiaram um ao outro de forma a sustentar aquilo que foi uma ditadura que apodreceu as relações humanas na China. Existem vários exemplos que levaram à desumanização das relações sociais, mesmo entre familiares diretos: o facto da mãe de Jung querer visitar a própria mãe, já depois de ser casada, era um comportamento considerado burguês. Apenas os membros do Partido com cargos mais importantes podiam casar e ainda assim não viviam maritalmente – a licença de casamento eram dozes dias, e apenas nesses doze dias as pessoas podiam estar juntas, apesar de serem casadas.

Uma das passagens que mais me chocou neste livro foi um relato de uma época de fome extrema. Falamos de uma altura em que as pessoas foram obrigadas a fazer apenas uma coisa: recolha de aço. Até mesmo os camponeses foram obrigados a parar a produção agrícola, o que, como seria de prever, causou uma crise que matou muita gente. Era comum serem encontradas pessoas mortas e terem o estômago cheio de palha. Numa das situações aqui referidas, um homem acaba por se suicidar porque tinha comido o próprio filho, que era uma criança. Pouco depois de ler isto tive de parar a leitura deste livro. Fiz uma pausa de cerca de 4 meses, até me sentir capaz de a retomar. O mais insólito no meio disto tudo era a forma que a mentira tomava, alimentada pelas próprias pessoas: mentia-se dizendo que havia abóboras ou nabos tão grandes que não cabiam nos meios de transporte.

Devido às denúncias feitas durante a grande purga de Mao, a Revolução Cultural, pais, mães e filhos foram forçados a denunciarem-se uns aos outros e era comum, inclusive, participarem nas reuniões de denúncia de familiares. A ideia de amor fraterno ou parental não existia, muito menos o amor romântico – apenas o amor ao Grande Líder era permitido: “O pai está próximo, a mãe está próxima, mas nenhum deles está tão próximo como o presidente Mao”. E a questão é que, após décadas a viver sob estes termos, as pessoas tornaram-se de facto frias. Criaram-se as condições para que os afetos deixassem de fazer parte da essência daqueles seres humanos. Era natural uma mulher, funcionária do partido, dar à luz, e pouco depois o bebé ficar sob os cuidados de uma ama e viver passar a viver com essa ama. Os pais não eram afetuosos com os filhos, dado se tratar de um comportamento burguês, logo, não aceite pelo Partido.

Os teatros, na sua grande maioria, foram fechados. Apenas algumas peças estavam autorizadas pelo regime. O mesmo aconteceu com tudo o que era arte e conhecimento: Mao dizia que a ignorância era uma coisa boa e tinha aversão a intelectuais. Foram feitas queimas de livros nas ruas e apenas os seus discursos e pouco mais estava autorizado a ser impresso e lido.

Era tão natural ver uma nuvem no céu como ver uma pessoa ser torturada. No entanto, contemplar nuvens não era visto com bons olhos – contemplar a natureza era algo burguês e, por norma, feito de forma individual. Um dos objetivos do regime era matar a individualidade pelo que as pessoas raramente estavam sozinhas (até porque, no caso dos funcionários do partido, isso nem seria fácil de acontecer – estavam sempre acompanhados).

Este livro mostrou-me uma realidade brutal, por vezes até surreal. Por decisão de Mao, houve uma altura em que os semáforos inverteram o seu significado, porque a cor vermelha não podia significar parar mas sim avançar (por ser a cor do partido). Durante algum tempo o trânsito foi caótico devido à absurdez de uma decisão irracional. Também, a dada altura, as refeições em casa foram proibidas, pelo que os funcionários do partido iam fazer as suas refeições às cantinas nas comunas. Ter canteiros com flores também foi algo que Mao considerou ser burguês, pelo que a própria Jung fez parte dos grupos de crianças que andaram a destruir as flores e os jardins.

Em oposição ao horror com o qual fui confrontada nesta leitura, as descrições que a autora faz das paisagens e de certas situações, conseguiram transmitir-me uma serenidade incrível. Talvez fosse sua intenção criar um equilíbrio de emoções, tendo em conta o peso que esta leitura pode ter.

É interessante a reflexão que a autora faz do livro doze anos depois de o escrever: a China está diferente mas há muito por fazer, e é disso exemplo o genocídio que tem sido feito às comunidades muçulmanas da etnia uigur.

Para que uma ditadura se estabeleça é preciso criar as condições que a proporcionem: uma crise, ou várias, sejam de cariz económico ou social. É necessário existirem agentes que a disseminem também e hoje em dia esse trabalho acaba por estar bastante facilitado pelas redes sociais. Uma coisa é certa: não há boas ditaduras. O autoritarismo destrói as relações humanas e a dignidade das pessoas. Durante esta leitura pensei imenso nas pessoas que vivem na Coreia do Norte, pois imagino que vivam sob um regime semelhante. Da mesma forma, fui levada a refletir nos caminhos que a Europa está a tomar. A democracia é uma coisa muito frágil e valiosa. É por isso que devemos cuidar dela.

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