E vocês sabem se eu sou cigana?

Iniciei um projeto novo com uma das turmas de 2º ano. Andava cheia de vontade de lançar este desafio a esta turma particular: por um lado, porque são aqueles que mais necessidade têm revelado de momentos para pensar, pensar criticamente sobre certos assuntos. Por outro lado porque, até à data, são o grupo que demonstrou uma maturidade capaz para desconstruir esses mesmos assuntos.

Seguindo a estratégia antirracista e ativista que já aqui apresentei no último post, dei a conhecer às crianças uma artista peculiar: Lita Cabellut, uma pintora cigana espanhola cuja história de vida nos deixa a pensar na nossa própria vida. Lita foi abandonada com poucos meses de idade pelo que ficou aos cuidados da avó. Não se ajustava na escola, tinha dislexia. Pedia nas ruas. Com o falecimento da avó, tinha Lita 10 anos, foi colocada num orfanato. Aos 13 anos de idade foi adotada e a sua vida mudou: durante este período descobriu o Museu do Prado, local que a ajudou a descobrir a sua vocação. Aos 19 anos mudou-se para Haia para estudar. Aqui mantém a sua residência até hoje.

LONDON, ENGLAND – OCTOBER 13: Lita Cabellut attends the 4th anniversary of Baku Magazine & preview of Lita Cabellut’s ‘Impulse’ at Opera Gallery on October 13, 2015 in London, England. (Photo by Anthony Harvey/Getty Images for Baku Magazine)

Assim que mencionei a palavra cigana, uma das crianças intervém:

“Os meus pais não gostam de ciganos!”

“E porquê?” – perguntei eu.

“porque conduzem mal, porque bebem”

“E são só os ciganos que conduzem mal e que bebem? E todos os ciganos conduzem mal e bebem?

A turma ficou pensativa e chegou à conclusão que não. Nisto, uma das crianças chama cigana a outra.

“Não sou cigano!”

“Porque te ofendeste que ele te chamasse cigano?”

“Porque eu não sou”

Nisto, outra criança intervém:

“Ele secalhar chamou-lhe cigano porque ele é preto”

“Mas ele é preto?!” – pergunto eu

“Não…” dizem alguns. “É castanho escuro”

“Ah bom… pensei que fosse eu que estivesse a ver mal. Ele é castanho escuro, este colega é castanho claro, ela é mais clara, eu também… mas a cor da nossa pele diz alguma coisa sobre quem nós somos?”

“Não…” respondem em coro… até que alguém diz:

“Mas os ciganos são da cor dele” – diz uma das crianças apontando para uma criança de pele morena.

“Meu amigos, vou-vos contar uma coisa que se calhar vocês não sabem… é que existem ciganos da cor dele (e aponto para o moreno) e existem ciganos da cor dele (aponto para a criança ruiva de pele muito clara”.

E foi aqui que decidi “abaná-los”:

“Vocês sabem se eu sou cigana?”

Silêncio. Rostos pensativos. Rostos preocupados. Olhos esbugalhados. Expressões de surpresa.

“E se eu fosse cigana?”

Silêncio.

“Se eu fosse cigana queria dizer que conduzo mal? Ou será que há pessoas que conduzem mal de todas as cores?”

A professora titular interveio:

“Meninos, não é por uma pessoa de determinada etnia ter um comportamento que vamos generalizar e dizer que todas essas pessoas são iguais!”

(7 anos. Relembro que estas crianças têm apenas 7 anos. Como podemos nós dizimar o preconceito? A xenofobia? O racismo? Começando com as idades mais tenras.)

Acalmados os ânimos, passámos à fase em que lhes mostro o trabalho da artista escolhida. A pintura de Lita é inspirada nos frescos de grande formato: retrata rostos, bustos e corpos de uma forma muito própria; tem uma palete de cores também muito própria. Foi interessante observar as reações das crianças às obras que lhes apresentei: por não ser o típico retrato notei que provocou algum choque; houve mesmo quem dissesse que as retratadas estavam mortas.

Trabalho de Lita Cabellut
Trabalho de Lita Cabellut

Aproveitando a disposição da sala expliquei qual era o desafio que teriam de fazer: desenhar o retrato do colega do lado. Este é um exercício exigente a vários níveis: treino do olhar mas sobretudo aprender a sair da bolha em que se vive; olhar o outro com olhos de ver. Estas crianças sentam-se todos os dias ao lado do respetivo colega mas dado que a disposição da sala foi alterada há cerca de uma semana, existem parelhas onde a empatia e a relação não existem.

“Vocês estão a olhar para a folha em branco mas deveriam estar a olhar para o colega do lado. Como é o formato do resto? Tem bochechas pequenas ou maiores? Como está o cabelo?”

Fui dando algumas estratégias no que diz respeito ao desenho, nomeadamente as guias para situar os elementos do rosto. Verifiquei que há quem desenhe por ter decorado; num segundo olhar conseguiram reparar em pormenores que ainda não tinham notado.

Este projeto não fica por aqui, terá continuidade. Mal eles sabem o que aí vem…

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