Eis um verbo que me remete de imediato à infância – brincar. A verdade é que conforme vamos crescendo o brincar vai-se transformando, chegando ao ponto de ficar esquecido quando entramos na vida adulta com tudo o que ela acarreta: a casa por limpar, a comida para fazer, as contas para pagar. Se conseguíssemos manter o brincar na nossa vida, tudo seria diferente. Acredito que a nossa sociedade e o sistema do qual fazemos parte seria mais leve, pensado de outra forma. Existiria espaço para viver, no verdadeiro sentido da palavra, porque brincar é isso – descobrir(-se), construir(-se).

Observar um bebé/criança a brincar é algo que me desperta fascínio; esta observação permite-me entrar no mundo da criança, compreender o seu temperamento e perceber os seus interesses.
A imitação das atividades quotidianas, muitas vezes denominada de representação, é um dos pilares de desenvolvimento mais importantes da primeira infância. A representação implica uma consciência dos mais variados papéis sociais que rodeiam a criança. Daí a importância da desconstrução de mitos relacionados com associações de género, pois é muito comum, ainda hoje, que as meninas sejam mais associadas e instigadas ao papel de cuidadoras, ao contrário dos meninos, que são mais expostos a brincadeiras relacionadas com construções, puzzles e carros (e aqui poderíamos falar de muitos exemplos concretos). Incomoda-me bastante que este tipo de conceções ainda esteja tão enraizado na cabeça dos educadores e dos professores.

Por querer contrariar esses pré conceitos e por desejar que ambos os meus filhos, cada um nascido com um sexo biológico diferente, tenha o mais variado tipo de experiências nas suas brincadeiras, faço por expô-los a contextos, objetos e situações diferentes. Nunca irei esquecer o rosto de admiração de algumas pessoas quando o meu filho recebeu uma boneca no Natal ou quando dissemos que lhe íamos arranjar uma cozinha de brincar.


A boneca tem sido personagem viva de várias brincadeiras. Uma das mais recentes esteve relacionada com o cuidar: dar comida, colocar a dormir. O D. pediu para a levar com ele para casa dos avós e eu disse que sim. Referiu que a boneca precisava de cinto e assim fiz. Já com a boneca no carro e de cinto posto disse “não podes sair, não tiras o cinto”, dizendo à boneca o que ele próprio ouve algumas vezes.
Já situação abaixo (ver foto) teve um prelúdio com a minha intervenção. Fui cortar bróculos e perguntei se a D. me queria ajudar. Foi a primeira vez que usou a torre de autonomia e adorou a posição em que encontrava, olhando em redor, apreciando a nova perspetiva de tudo. Eu cortava os floretes e ia-lhos dando. Ela colocava-os no tacho.

Quando terminámos perguntei se queria ir fazer sopa e acenou com a cabeça. Dei-lhe uns pedaços de cenoura e talos dos bróculos. A primeira fase da brincadeira passou pela transferência do conteúdo: encher e vazar, retirar os pedaços um a um de um local para outro. Só depois pegou no tacho e “bebeu” a sopa, num momento de representação criativa, “provando” a sopa que tinha feito. A seguir deu-me a provar e depois foi dar aos bonecos.
A D. acabou por replicar na sua brincadeira a solo aquilo que tínhamos feito anteriormente, pois as suas ações foram baseadas naquilo que tinha vivido e observado. Quando lhe perguntei se queria ir fazer sopa foi com o objetivo de observar o que iria fazer tendo em conta precisamente a experiência que tinha vivido anteriormente.
Ultimamente tenho lido várias opiniões sobre o dito brincar livre e qual o papel do adulto nesses momentos, assunto muito impulsionado pelos estudos de Emmi Pikler. A meu ver, a intervenção do adulto não passa por ensinar a brincar ou ensinar a fazer algo mas deve, sobretudo, partir de uma posição de observador participante. Provavelmente não teria assistido a este jogo simbólico por parte da bebé de 1 ano e 4 meses se não tivesse acontecido a minha intervenção anterior. Ainda assim, os conceitos de jogo simbólico e de brincar livre são diferentes para mim: se no primeiro há uma tendência de representação de papéis sociais, onde a brincadeira tem uma determinada estrutura social e cultural, no segundo a exploração é mais livre, baseada na descoberta de materiais que tantas vezes não são considerados brinquedos e onde os bebés e as crianças vão encontrando uma estrutura que não está previamente definida, construindo-a de acordo com as experiências que vão tendo. Aqui, os materiais, o espaço, o corpo, os sons e as sensações comandam tudo e não há necessariamente, uma reprodução de um comportamento social. Poderíamos até questionar: será o brincar livre mais impulsionador da criatividade do que o jogo simbólico?

A verdade é que a base social e cultural do brincar ao faz de conta, além de ser importante para a formação social e cívica das crianças (se contemplarmos as regras sociais que lhe estão implícitas), também pode ser terreno fértil para a aprendizagem de preconceitos e estereótipos, como os de género, referidos no início deste texto. Ainda assim há outra questão que me faz valorizar o faz de conta: o replicar das vivências e tarefas quotidianas, o que nos poderá levar a Maria Montessori. De acordo com a sua metodologia podemos ter contextos estruturados e outros não, o que me remete de imediato à ideia de jogo simbólico vs brincar livre.
Montessori era uma defensora da autonomia da criança, valorizando a sua capacidade de aprender como o mundo funciona e qual o seu papel nesse mundo pois é pela ação que as crianças se constroem e se transformam. Daí que o papel de observador participante por parte do adulto seja tão importante: não devemos interromper a criança quando ela acredita que é capaz de fazer as coisas sozinha, o que tantas vezes acontece porque achamos que precisa da nossa ajuda. A verdade é que, por mais tempo que demore ou frustrações que enfrente, a criança conseguirá levar a sua tarefa até ao fim.

Posto isto, convidar a criança a participar nas tarefas quotidianas é, por um lado, fonte de desenvolvimento a vários níveis (social, motor, emocional…), como também é ponto de partida para brincadeiras de faz de conta. Arrumar a loiça da máquina, cortar legumes para a salada, limpar a mesa, colocar os copos no sítio, arrumar os livros na estante – tudo isto são tarefas nas quais, com as devidas questões de segurança envolvidas, os bebés e crianças pequenas podem começar a ter, desde bem cedo.

É muito clara, para mim, a relação entre a prática das tarefas do quotidiano com o desenvolvimento dos bebés e crianças, e da sua influência nas brincadeiras de faz de conta. Estes “pólos” estão em constante contacto, havendo uma interdependência entre si, sendo que se tornam motores da criatividade, na medida em que são estas as situações e os contextos que, desde cedo, levam os bebés e crianças à busca de soluções para problemas e desafios que encontram nas suas brincadeiras.
